O Silêncio dos que Sustentam o SNS

O final de novembro traz inevitavelmente à discussão pública a Prova Nacional de Acesso. Volta-se a falar da escolha da especialidade, ou, mais precisamente, da falta dela. Cerca de 20% das vagas ficaram por preencher, sobretudo em Lisboa e Vale do Tejo, exatamente nas áreas que mais sustentam o sistema: Medicina Interna e Medicina Geral e Familiar. Este fenómeno, repetido ano após ano, já não é um acaso; é um sintoma claro de que há algo profundamente desalinhado na forma como estruturamos o Serviço Nacional de Saúde. E, claro, basta o tema regressar para que surja a habitual legião de comentadores profissionais: especialistas autoproclamados em tudo e simultaneamente em nada, sempre prontos a despejar explicações simples para problemas complexos, entre clichés, moralismos e uma confortável ignorância da realidade.

Mas comecemos pelo início. Ser médico não é, nem alguma vez poderá ser, “uma profissão como outra qualquer”. A medicina tem uma dimensão própria, quase artesanal, que exige tempo, maturação, experiência e uma combinação rara de conhecimento técnico, raciocínio clínico, intuição e humanidade. É uma arte que se aperfeiçoa no contacto direto com as pessoas, no detalhe, no gesto, no olhar, na responsabilidade de quem se coloca perante a vulnerabilidade do outro.

No entanto, esta arte tem um preço: um percurso formativo mais longo que qualquer outro, urgências extenuantes, noites consecutivas, feriados dentro do hospital e uma carga emocional que não cabe em estatísticas. A isto junta-se um sistema que impõe 150 horas extraordinárias obrigatórias por ano: “horas extra obrigatórias”, um oxímoro perfeito, ainda mais absurdo quando lembramos que os médicos do SNS têm 40 horas semanais, mais do que as 35 horas do restante setor público. E importa dizê-lo sem hesitações: os médicos não são os únicos a sentir o peso de um Estado que normaliza o extraordinário. Há milhares de profissionais do setor público que acumulam tarefas, prolongam horários e levam trabalho para casa sem que isso seja reconhecido ou remunerado. Mas enquanto noutros setores estas horas extra são invisíveis e informalmente exigidas (erradamente), no SNS são legalmente impostas – e sobre elas assenta, de forma estrutural, o funcionamento do sistema. No fundo, o SNS mantém-se à tona graças a uma fórmula simples, quase mágica: pedir mais a quem já dá muito mais.

É também importante desmontar um mito que insiste em sobreviver ao tempo: Portugal não tem falta de médicos. E os números mais recentes confirmam esta contradição: Portugal tem 5.8 médicos por 1000 habitantes – muito acima da média da OCDE – mas continua com 7.6 enfermeiros por 1000 habitantes, abaixo da média e claramente insuficiente para dar suporte clínico adequado. Ou seja, não é a falta de médicos no país que está a fragilizar o SNS, é a falta de condições, equipas completas e estruturas capazes de os reter. Não é um problema de quantidade; é um problema de fundações. O sistema é um balde furado onde se tenta resolver a fuga de água abrindo mais a torneira. Funciona durante uns minutos, e depois volta tudo ao mesmo - e quem sofre são os doentes, que enfrentam consultas atrasadas, urgências saturadas e cuidados inevitavelmente menos humanos.

Perante esta realidade de “falta de médicos”, ressurge ciclicamente a solução fácil e demagogicamente apelativa: abrir mais vagas nas faculdades de Medicina ou criar novas escolas médicas. É aqui que muitos acusam os médicos de “corporativismo”, como se defender qualidade formativa fosse defender privilégios. Mas a verdade é simples e teimosa: sem especialistas suficientes no SNS para formar internos, aumentar o número de estudantes apenas agrava o problema. Não é possível formar mais médicos sem haver quem os forme. A formação pré-graduada portuguesa, reconhecida lá fora, está à beira da rutura cá dentro, com rácios tutor-aluno cada vez mais desajustados, carreiras académicas pouco atrativas e serviços que acumulam responsabilidades assistenciais com responsabilidades pedagógicas, sem folga para ambas. É, literalmente, empurrar milhares de jovens para um funil cada vez mais estreito, que range cada vez mais.

Ora, não havendo especialistas suficientes, entra aqui um detalhe que continua convenientemente esquecido no debate público: os internos representam cerca de um terço dos médicos que trabalham no SNS. Não são estagiários, não são aprendizes, não estão ali só para observar. São eles que asseguram consultas, urgências, internamentos, vigilância clínica e boa parte da rotina hospitalar. Sem internos, o sistema não esperava pelo dia seguinte para colapsar: colapsava hoje. A sua importância precisa, por isso, de ser desmistificada com urgência, porque continua a ser tratada, no debate público, com uma leviandade perigosa.

Voltando à PNA, quando olhamos para as especialidades que ficam por preencher, a gravidade torna-se ainda mais evidente. A Medicina Geral e Familiar, que vê um terço das suas vagas por ocupar, é a primeira linha de cuidados: estabiliza os doentes crónicos, previne complicações e evita urgências desnecessárias. Quando falha, o dominó começa a cair, e a peça seguinte é, consequentemente, a Medicina Interna (que ficou com 50% das vagas por preencher). Os internistas são o motor clínico do hospital, especialmente numa população envelhecida e complexa como a nossa. Mas serviços sobrecarregados, condições difíceis e pressão constante tornam esta área cada vez menos apelativa, não por falta de vocação, mas porque as condições de trabalho são, muitas vezes, simplesmente insustentáveis. E isto tem consequências reais.

Num país com uma das maiores cargas de doença crónica da Europa, a falta de equipas estáveis e de continuidade não é apenas “desconforto” para os profissionais, é um risco grave para os doentes. Doenças que exigem vigilância apertada ficam à mercê de agendas instáveis, internamentos evitáveis multiplicam-se, a urgência transforma-se na porta de entrada para aquilo que deveria ser resolvido na comunidade, resultando por isso numa das temáticas mais mediáticas recentemente, os tempos de espera brutais. Portugal investe pouco em prevenção e cuidados continuados – somos, afinal, um país especialista em remediar em vez de prevenir – , e quando o sistema falha a montante, a pressão recai sempre sobre as especialidades que hoje ninguém quer escolher. A erosão dos profissionais traduz-se, inevitavelmente, na degradação da qualidade dos cuidados e, no limite, da própria segurança dos doentes.

A isto junta-se o teatro permanente do escrutínio público. Vivemos num país onde cada caso isolado transforma-se em polémica nacional, onde se confunde erro com negligência e onde a discussão informada é rapidamente engolida pelo ruído das redes sociais. Num ambiente destes, qualquer tentativa de reforma séria é esmagada pela urgência política e pela instabilidade de lideranças que mudam demasiado depressa para resultados palpáveis. E, já agora, permito-me uma nota pessoal: num momento de duvidosa lucidez, voltei a instalar o Facebook. Má ideia. De vez em quando, quando estou aborrecido, lá faço o scroll masoquista pela página inicial e surge, infelizmente, uma notícia sobre médicos. Basta espreitar a caixa de comentários para perceber o estado da conversa pública: somos ingratos, preguiçosos, “a geração que não quer trabalhar”, formados “à custa do contribuinte” e que, portanto, deveria retribuir com anos de labuta forçada no SNS. Pelo meio, não falta quem invoque a famosa “bandalheira”, e com um pouco de imaginação ainda conseguem culpar imigrantes, porque no Facebook há sempre espaço para essa criatividade. Este caldo de indignação instantânea não só distorce a realidade, como alimenta uma narrativa tóxica que torna a discussão séria sobre o SNS praticamente impossível.

E como se não bastasse, assistimos ainda à criação – mais política do que lógica – da especialidade de Medicina de Urgência e Emergência, apresentada como solução moderna mas desenhada sem qualquer ligação às preferências da geração atual, que tende precisamente a evitar áreas centradas na urgência permanente. O resultado era previsível: também ali sobraram vagas. E, das que acabaram por ser escolhidas, muitas ficaram para quem já tinha poucas alternativas alinhadas com aquilo que imaginava para a sua carreira. Foi mais um penso rápido aplicado sobre uma hemorragia estrutural, um padrão a que, infelizmente, já nos habituaram.

No meio disto tudo, lá surge, pelas redes sociais e pelos habituais comentadores know-it-all, a ideia genial de obrigar médicos a “ficar X anos no público” ou a “pagar o curso de volta”. Para além de incoerente, dado que nenhum outro licenciado formado numa universidade pública é obrigado a trabalhar para o Estado, parte logo de uma premissa falsa: os internos já trabalham no público todos os dias. Não fogem. Sustentam o sistema. E, nesse sentido, convém recordar um detalhe que muitos destes engenheiros de soluções rápidas ignoram: antes de chegarem sequer à especialidade, os jovens médicos fazem um ano de formação geral, seguido de mais quatro a seis anos de internato de formação específica. Ou seja, entre cinco e sete anos de trabalho efetivo no SNS antes de se tornarem especialistas. Querem, por algum motivo que me escapa, obrigar ainda mais quem já lá está a dar tudo o que tem.

Há ainda um elefante na sala que muitos fingem não ver: a questão monetária. O amor à camisola existe, claro que existe, mas esse amor não paga renda numa cidade onde arrendar um T1 consome metade do salário de um interno, não paga deslocações constantes e não compensa uma carreira que leva quase uma década até atingir um rendimento verdadeiramente estável. Critica-se quem procura melhores condições como se desejar um salário digno fosse um pecado exclusivo dos médicos, quando não há outra profissão onde alguém seja esperado viver apenas de “vocação”.

É neste vazio que surgem os chamados “tarefeiros”, rapidamente transformados no bode expiatório da crise do SNS, quando na verdade são apenas o sintoma mais óbvio de um sistema que falhou em garantir condições estáveis e justas. Trabalhar a recibos verdes, sem previsibilidade e sem proteção social adequada, não é um privilégio; é o desenrasque à portuguesa elevado a política de recursos humanos. E se cada vez mais médicos seguem esse caminho, é porque, pela primeira vez, veem o seu esforço reconhecido financeiramente.

Mas sejamos honestos: ninguém sonha viver eternamente como tarefeiro. Ninguém escolhe a precariedade. Escolhe-se dignidade – e essa, lamentavelmente, está a ser procurada fora do SNS. É precisamente aqui que a nova geração traça uma linha: não rejeita responsabilidade, não foge do compromisso com os doentes, mas recusa a lógica do sacrifício infinito que marcou o passado. Quer exercer medicina com excelência, humanismo e rigor, mas também com equilíbrio, vida própria e saúde mental. Não pode ser visto como um capricho; é um requisito básico para que uma carreira tão longa seja sustentável.

E a verdade é que o SNS pouco lhes oferece nesse campo. A carreira médica permanece desarticulada, sem progressão previsível, sem valorização da diferenciação, sem reconhecimento da atividade formativa e dependente de concursos que surgem por oportunidade e não por mérito. Num sistema sem um caminho claro para crescer, torna-se difícil pedir a alguém que fique.

É neste contexto que a realidade se impõe, silenciosa mas constante: quatro médicos deixam o SNS todos os dias, entre reformas antecipadas e rescisões de contrato. Não são números abstratos - são pessoas, equipas, turnos inteiros que desaparecem. Cada saída representa mais uma urgência com menos mãos, mais uma lista de espera que se arrasta, mais um serviço que perde a capacidade de garantir os cuidados que deveria. É assim, não em teorias ou promessas, que o sistema se vai desgastando por dentro.

E assim chegamos ao verdadeiro ponto crítico. O SNS aproxima-se perigosamente de um limite. Não porque faltem médicos, nem porque falte vocação, mas porque está a falhar na única variável que suporta qualquer serviço de saúde: as pessoas que nele trabalham. Quando um país se habitua ao sacrifício, quando transforma o extraordinário em obrigatório e quando exige resiliência infinita a quem vive no limite, o resultado não é força, é rutura.

Se não cuidarmos de quem cuida, o que está em risco não é apenas o funcionamento diário de hospitais e centros de saúde; é a própria promessa do SNS: a garantia de que qualquer pessoa, em qualquer circunstância, será recebida por profissionais competentes, humanos e disponíveis. Dignificar (novamente) a profissão médica não é privilégio corporativo; é a condição essencial para que o sistema sobreviva. Porque a qualidade dos cuidados depende, inevitavelmente, da qualidade de vida de quem os presta. E quando essa vida se esgota, não caem só turnos ou escalas, cai, de longe, uma das maiores conquistas sociais do país.

A verdade é uma: nenhum sistema resiste eternamente à erosão silenciosa de quem o segura. Ruir não é irremediável. Mas ignorar quem sustenta o SNS é a forma mais rápida de garantir que aconteça.

por José Guilherme Silva